Designer e professora dão exemplo para salvar património navegável em risco de extinção

Investigadora que fez estudo sobre os barcos tradicionais da Ria de Aveiro restaurou ‘bateira’ típica associando-se ao esforço de alguns entusiastas na preservação do património navegável.

Quando Etelvina Almeida, designer de 48 anos natural de Aveiro, ‘mergulhou’ na pesquisa sobre os barcos tradicionais da Ria de Aveiro contava concluí-la nos dois anos seguintes. Afinal, acabou por precisar do dobro do tempo para chegar a bom porto, tamanha foi a empreitada.

A ‘tese’ de mestrado “Embarcações Tradicionais da Ria de Aveiro – análise formal, o desenho e o processo construtivo” está pronta desde 2012, entretanto já foi revista e atualizada, mas permanece “embargada” à espera de um mecenas para ser publicada.

São cerca de 300 páginas, com mais de 500 fotografias e muitas outras informações. Um dos trabalhos académicos de maior fôlego dos últimos anos sobre os barcos típicos da laguna, como o moliceiro (cerca de 15 metros de comprimento), que é o ex libris de Aveiro, permanece, assim, inédito.

A autora perdeu a conta dos dias de observação, a acompanhar construções e reparações de barcos, a fazer medições, desenhos, registos fotográficos, a falar com pescadores, carpinteiros, a conhecer os costumes, consultar arquivos e indagar entidades. O diário de bordo está online ficou registado em https://etelvina.wordpress.com.

As conclusões tiradas há cinco anos continuam atuais e, infelizmente, em tons cinzentos: “O estado da arte ? É a perda de grande parte do património navegável, desta riqueza etnográfica, e a sua desvalorização identitária, nomeadamente das embarcações tradicionais”, alerta.

A investigadora, entretanto, decidiu dar o exemplo no esforço de preservação que um reduzido número de pessoas está disposta ou tem condições para a fazer. Passou das palavras aos atos e realizou agora o sonho que perseguia há uma década, quando começou a pesquisa: tornou-se a feliz proprietária de uma das embarcações mais tradicionais da Ria de Aveiro, que restaurou com apoio de um dos últimos mestres carpinteiros da Murtosa, preparando para breve um bota abaixo tradicional.

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“Foi uma aventura ter esta bateirinha”

A defensora do património navegável da Ria de Aveiro quis dar um contributo especial para ajudar a preservar as embarcações mais típicas. A máxima “o sonho comanda a vida” confirma-se. E uma década depois da ideia, concretizou-se: Etelvina Almeida tornou-se a feliz proprietária de uma bateira (quatro a seis metros de comprimento), que faz parte das embarcações mais tradicionais da Ria de Aveiro.

“Foi uma aventura ter esta bateirinha. É pelo fascínio e admiração. Mas também por querer colaborar e participar na preservação deste património lagunar que corre risco de se perder”, contou a a divulgadora das vivências ribeirinhas, que contou com apoio familiar e de vários amigos.

A embarcação ficou como nova graças à arte do mestre Zé Rito, um dos últimos carpinteiros navais tradicionais que trabalha no estaleiro da praia do Monte Branco, na Torreira, Murtosa.

Está pronta a navegar por uma só pessoa, se for necessário, pelos canais mais pequenos ou esteiros, cumprindo as suas várias funções originais, de caça, pesca, transporte ou passeio. A remos, vara ou vela.

“A minha grande paixão é o moliceiro, se pudesse escolher… É o que mais me seduz, mas outros valores se impõem”, contou Etelvina Almeida, que se dedica também à fotografia.

A bateira ficou batizada com o nome de “A menina da Ria”. É assim que Etelvina é conhecida entre as gentes ribeirinhas que acompanha de perto há três décadas. “Nesta região o tratamento por alcunha é usual. Além disso, o facto de ser a mais pequena embarcação da Ria levou-me também ao encontro desse nome, que se encaixa perfeitamente”, explicou.

O bota abaixo vai merecer festa a agendar. “É uma paixão navegar pela Ria. Pretendo, humildemente, dar um pequeno contributo para a preservação das embarcações tradicionais que se estão a perder. Mas também em defesa das tradições, das festas e dos costumes”, referiu, lembrando que “são necessários incentivos” urgentemente para recuperar o que ainda existe do património navegável.

São necessários “moliceiros verdadeiros” em atividade

Atraída desde menina pelos canais e pelas salinas, dos tempos de passeios na “Ria aberta” a bordo de mercantel (o barco que transportava sal das marinhas de Aveiro) até à casa abrigo de São Jacinto, Etelvina Almeida encontrou sempre na laguna “inspiração e tranquilidade”.

“Anos mais tarde”, na Universidade de Aveiro, o curso de Design (Comunicação e Industrial) levou-a a aprofundar a pesquisa, em terra e na água. Um levantamento do património que ligou os extremos da Ria, do Norte ao Sul, do Carregal a Mira.

Ultimamente, alguns bota abaixo de barcos moliceiros, construídos de raiz ou reparados, evidenciam um esforço, sobretudo de privados, “com muito entusiasmo e muito custo” para a inversão do declínio. Ainda assim, é preciso maior envolvimento, especialmente do poder local.

Etelvina Almeida não desvaloriza o empenho dos operadores marítimo turísticos de Aveiro, que, a reboque dos passeios pelos canais citadinos, foram determinantes na renovação da frota. Mas lembra que são necessários “moliceiros verdadeiros” em atividade. “Aqueles que estão preparados para navegar à vela e a participar em regatas é que são muito poucos”, cerca de uma dezena.

Por isso, “algo mais terá de se fazer”. Desde logo, e com urgência, para preservar o maior dos barcos tradicionais da Ria, o mercantel / saleiro (com cerca de 18 metros de comprimento era usado antigamente no transporte de sal das marinhas de Aveiro para os armazéns em terra firme), dos quais só restam algumas réplicas a navegar. O único autêntico está em doca seca, exposto no Museu Marítimo de Ílhavo.

“A museologia é um meio de preservação e divulgação, mas por si só e isolado, não chega. Uma embarcação quer-se a navegar, senão torna-se obsoleta, uma peça de museu e nada mais – ela quer-se viva, alimentando memórias, estimulando novas gerações, preservando a nossa identidade lagunar”, conclui Etelvina Almeida em jeito de apelo.

Mulher arrais de Ílhavo deu nova vida ao moliceiro São Salvador

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Uma professora residente na Costa Nova do Prado, município de Ílhavo, é a única mulher arrais a navegar a plena vela na Ria de Aveiro.

A compra do São Salvador, há dois anos, selou um amor com muitos anos, em especial pelo ex libris da laguna.

“A minha paixão pela Ria e pelo Mar vem desde pequena. As minhas férias, que na altura eram grandes, de 1 de julho até finais de Setembro, sempre foram passadas na praia da Costa Nova. Desde muito cedo comecei a andar em barcos à vela o que sempre me encantou”, conta Maria Emília Prado.

Não se ficam por aqui as memórias salpicadas de água salgada e nortadas de feição para encurtar o percurso das margens. “Já no tempo da minha juventude, as idas à Bruxa na barca eram momentos de encanto sempre que se proporcionava a travessia à vela”.

O tempo haveria de passar inexoravelmente. Por volta de 2013 surgiu a oportunidade de entrar em “passeios maravilhosos” a bordo do moliceiro Pardilhoense. “Nessa altura fiquei absolutamente encantada por esta forma de navegar em Ria aberta”, relata a professora que ensina matemática no 2º ciclo do Agrupamento de Escolas da Gafanha da Encarnação.

Um barco “com uma enorme estabilidade e que, devido às suas características, pode ir a sítios com pouca profundidade, possibilitando assim passeios por esteiros não navegáveis por outro tipo de embarcação.”

Em 2015 surgiu mesmo a oportunidade de comprar um moliceiro que estava a ser recuperado por um particular que o adquirira à Junta de Freguesia de São Salvador. Maria Emília Prado não resistiu à tentação e lançou a mão ao São Salvador.

Na altura não havia nenhum a navegar no canal de Mira, nem a barca da passagem para a Bruxa. O Inobador, moliceiro do Clube de Vela da Costa Nova, estava parado, e o Pardilhoenese tinha sido vendido para os canais da cidade de Aveiro.

“A minha grande angústia era ficar sem nenhum moliceiro para passear na ria. Decidi-me então pela compra do São Salvador”, refere Maria Emília Prado que tirou a carta de patrão local para poder ficar ao leme.

A aprendizagem requerer lições práticas que não aparecem nos manuais. “Não é difícil navegar com o moliceiro, para quem já sabe andar à vela. É um barco que se governa com facilidade, mas o seu grande comprimento e peso requerem uma prática e conhecimentos especiais e característicos da embarcação”, lembra.

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“É difícil manter um barco destes”

O moliceiro São Salvador, que está atracado no cais do jardim Oudinot, destina-se apenas a passeios com familiares e amigos como barco de recreio.

O prazer de navegar tem um reverso na medalha. “É difícil manter um barco destes, pois a sua manutenção é cara e exige muitos cuidados. Durante o Inverno quando chove, é preciso tirar a água. Não fossem os amigos que vão ajudando e sempre que chovesse, como aliás já fiz muitas vezes, teria de ir tirar água nem que fosse à chuva e ao frio e já de noite, uma vez que mantenho a minha atividade profissional de professora”, explica.

O esforço de preservação de embarcações em risco de extinção nem sempre é reconhecido. Maria Emília Prado gostava de ver replicados bons exemplos que lhe chegam ao conhecimento. “À semelhança do que se faz aqui ao lado em Espanha, uma ajuda seria os barcos tradicionais não pagarem o cais”, sugere.

“As autarquias deviam dar uma visibilidade maior a estas embarcações com ajudas que não fossem só e apenas aquando das regatas. São barcos únicos no Mundo e que se não forem dados apoios significativos, tenderão a desaparecer”, alerta também.

Apoios que poderiam ser dados “de muitas formas, uma das quais e das mais simples é a sua divulgação através de programas turísticos, nomeadamente para os Moliceiros que estão com atividade marítimo turística.”

 

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